terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Mergulho

De repente, cansou-se! Não quer mais sentir a areia. Grãos finos unidos em fortes rajadas. Por muito tempo, linhas desconexas levantaram-se do solo fino, até juntarem-se todas. A tempestade durou horas. Ou foram dias? Meses, talvez. O tempo dilatou-se em material espesso, a colidir sobre o corpo. O uivo do vento abafava o único som que poderia vir na paisagem deserta. Batidas de coração céleres. Medo. Buscava o mar. Não encontrava. Olhos irritados e cerrados, pés centímetros sob chão fofo. Até que sentiu-lhes. Ampliou os sentidos. Moveu-se até conseguir se desfazer da terra pesada. Veio o choque. A água bateu forte! Escorreu a terra na pele. Mais! molhou o rosto e atirou-se à primeira onda. Densa e forte. Acostumou-se ao frio das correntes líquidas. Retornou à superfície. No rastro do sol cadente, azul escuro. Imensidão. A lua cheia corta o céu. Encontro com a penumbra. Sombra de nós mesmos. Procura o amanhecer. Labirinto cósmico da alma.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Aos intolerantes

Tem muita gente por aí que precisa aprender com o Ferreira Gullar...

Raiz da intolerância

Ninguém representa maior ameaça à liberdade do outro do que quem se considera dono da verdade. E a lógica que conduz da certeza inquestionável ao linchamento do discordante é simples: "se eu estou com a verdade e ele discorda de mim é que ele está com a mentira, e não se pode deixar que a mentira prospere". Logo, calar o mentiroso (ou o traidor da verdade) é um bem que se faz à pátria ou à humanidade ou a Deus ou ao partido.
Existem verdades de diferentes pesos e, conforme o peso, mais grave ou menos grave será o erro praticado pelo discordante. Por exemplo, se minha verdade consiste em afirmar que o futebol-arte é melhor que o futebol-força, o máximo que pode resultar disto serão algumas tiradas irônicas mas, se estou convencido de que minha seita é a única que incorpora a verdade do Cristo Salvador, aí o discordante está do lado do Diabo, a encarnação do Mal.
Até hoje me surpreendo com o que a igreja católica fez com os supostos hereges durante a Inquisição. Inventaram-se os mais sofisticados aparelhos de tortura para obrigar o acusado a confessar sua aliança com o Demônio. O coitado estava num beco sem saída: se não confessava era submetido a todo tipo de suplício; se confessava, era queimado vivo. Mal dá para acreditar que tais crueldades eram praticadas por religiosos, que pregavam a misericórdia e o amor ao próximo. Mas a coisa é de uma lógica simples e aterradora: exatamente por amarem a Deus e ao próximo, não podiam permitir que o herege fosse arrastado pelo Demônio às chamas eternas do inferno. Dentro desta perspectiva, a tortura e a morte na fogueira eram atos piedosos, a mais alta demonstração de amor ao próximo que a Igreja podia dar aos seus filhos!
Pode parecer descabido falar hoje de uma coisa tão antiga quanto a Inquisição. Mas não é. O governo do Irã condenou à morte, há poucos anos, o escritor Salman Rushdy por ter escrito um livro considerado ofensivo ao Corão? E o que é a fúria homicida de Bin Laden e seus seguidores senão a expressão da intolerância dos que julgam estar de posse da verdade divina? Mas não só a convicção religiosa intolerante conduz à necessidade de exterminar o "infiel". A convicção político-ideológica também. Há exemplo mais lamentável de intolerância e barbárie que o nazismo? E que dizer do stalinismo? Lembro-me do comentário de uma amiga minha, companheira no partido comunista, a propósito da notícia de que um escritor soviético dissidente tinha sido internado num manicômio.
-Tem que ser internado mesmo. Para discordar de um regime que só visa o bem do povo, o cara só pode estar louco.
Por isso é que o espírito crítico - e particularmente o autocrítico - é essencial. Sem ele não há tolerância e conseqüentemente não há democracia. E só pode ter espírito autocrítico quem admite não ser dono da verdade e, mesmo, que não existem verdades absolutas, inquestionáveis. Este, aliás, é o ponto principal e sobre ele gostaria de tecer algumas considerações.
Já escrevi aqui, mais de uma vez, que quem aceita a complexidade do real - do mundo, da vida - não pode ser sectário - dono da verdade - quem simplifica as coisas, ignora que todo problema contém diversos lados e contradições. Lidar com essa complexidade é, sem dúvida, difícil e desconfortável; muito mais cômodo é afirmar: "aquele sujeito é um imbecil" - em lugar de tentar entender as suas razões. Isto se vê a todo momento, especialmente nas discussões políticas. É a tática de desqualificação do outro. Em lugar de responder a seus argumentos, afirmo que ele é safado, desonesto, mau caráter.
Veja bem, quando digo que se deve ser tolerante e que não existem verdades absolutas, não estou pregando o abandono das convicções firmes e das atitudes éticas. Umas e outras devem ser fruto do conhecimento e da reflexão, os quais nos conduzirão inevitavelmente a reconher que a realidade excede nossa capacidade de abrangê-la integralmente. O conhecimento e a reflexão nos conduzem à modéstia e à tolerância. Quando perguntaram a Marx qual a virtude intelectual que mais admirava, ele respondeu: a dúvida.


De "Coleções Melhores Crônicas - Ferreira Gullar".