quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Aos intolerantes

Tem muita gente por aí que precisa aprender com o Ferreira Gullar...

Raiz da intolerância

Ninguém representa maior ameaça à liberdade do outro do que quem se considera dono da verdade. E a lógica que conduz da certeza inquestionável ao linchamento do discordante é simples: "se eu estou com a verdade e ele discorda de mim é que ele está com a mentira, e não se pode deixar que a mentira prospere". Logo, calar o mentiroso (ou o traidor da verdade) é um bem que se faz à pátria ou à humanidade ou a Deus ou ao partido.
Existem verdades de diferentes pesos e, conforme o peso, mais grave ou menos grave será o erro praticado pelo discordante. Por exemplo, se minha verdade consiste em afirmar que o futebol-arte é melhor que o futebol-força, o máximo que pode resultar disto serão algumas tiradas irônicas mas, se estou convencido de que minha seita é a única que incorpora a verdade do Cristo Salvador, aí o discordante está do lado do Diabo, a encarnação do Mal.
Até hoje me surpreendo com o que a igreja católica fez com os supostos hereges durante a Inquisição. Inventaram-se os mais sofisticados aparelhos de tortura para obrigar o acusado a confessar sua aliança com o Demônio. O coitado estava num beco sem saída: se não confessava era submetido a todo tipo de suplício; se confessava, era queimado vivo. Mal dá para acreditar que tais crueldades eram praticadas por religiosos, que pregavam a misericórdia e o amor ao próximo. Mas a coisa é de uma lógica simples e aterradora: exatamente por amarem a Deus e ao próximo, não podiam permitir que o herege fosse arrastado pelo Demônio às chamas eternas do inferno. Dentro desta perspectiva, a tortura e a morte na fogueira eram atos piedosos, a mais alta demonstração de amor ao próximo que a Igreja podia dar aos seus filhos!
Pode parecer descabido falar hoje de uma coisa tão antiga quanto a Inquisição. Mas não é. O governo do Irã condenou à morte, há poucos anos, o escritor Salman Rushdy por ter escrito um livro considerado ofensivo ao Corão? E o que é a fúria homicida de Bin Laden e seus seguidores senão a expressão da intolerância dos que julgam estar de posse da verdade divina? Mas não só a convicção religiosa intolerante conduz à necessidade de exterminar o "infiel". A convicção político-ideológica também. Há exemplo mais lamentável de intolerância e barbárie que o nazismo? E que dizer do stalinismo? Lembro-me do comentário de uma amiga minha, companheira no partido comunista, a propósito da notícia de que um escritor soviético dissidente tinha sido internado num manicômio.
-Tem que ser internado mesmo. Para discordar de um regime que só visa o bem do povo, o cara só pode estar louco.
Por isso é que o espírito crítico - e particularmente o autocrítico - é essencial. Sem ele não há tolerância e conseqüentemente não há democracia. E só pode ter espírito autocrítico quem admite não ser dono da verdade e, mesmo, que não existem verdades absolutas, inquestionáveis. Este, aliás, é o ponto principal e sobre ele gostaria de tecer algumas considerações.
Já escrevi aqui, mais de uma vez, que quem aceita a complexidade do real - do mundo, da vida - não pode ser sectário - dono da verdade - quem simplifica as coisas, ignora que todo problema contém diversos lados e contradições. Lidar com essa complexidade é, sem dúvida, difícil e desconfortável; muito mais cômodo é afirmar: "aquele sujeito é um imbecil" - em lugar de tentar entender as suas razões. Isto se vê a todo momento, especialmente nas discussões políticas. É a tática de desqualificação do outro. Em lugar de responder a seus argumentos, afirmo que ele é safado, desonesto, mau caráter.
Veja bem, quando digo que se deve ser tolerante e que não existem verdades absolutas, não estou pregando o abandono das convicções firmes e das atitudes éticas. Umas e outras devem ser fruto do conhecimento e da reflexão, os quais nos conduzirão inevitavelmente a reconher que a realidade excede nossa capacidade de abrangê-la integralmente. O conhecimento e a reflexão nos conduzem à modéstia e à tolerância. Quando perguntaram a Marx qual a virtude intelectual que mais admirava, ele respondeu: a dúvida.


De "Coleções Melhores Crônicas - Ferreira Gullar".

sábado, 9 de outubro de 2010

E aí, John?

70 anos, John.
E se vivesse por mais 30?

Teria composto canções?
Teria lançado mais discos?
Teria escrito livros?
Estaria com Yoko?
Irritaria os fãs?
Gritaria pelo povo?
Encontraria Chapman?
Rasgaria os jornais?
Detestaria o papa?
Sumiria do mapa?
Velaria George?
Rejeitaria web?
Suportaria hipocrisia?
Estaria em palco?
Continuaria a sonhar?

E aí, John?

sábado, 2 de outubro de 2010

Mundo Novo

Libertação.
Elis Regina, na letra de Gonzaguinha, canta bem isso.
Perco-me na música.
Nela descubro porque viver faz sentido.
É a busca incessante dessa liberdade, do Mundo Novo.
Dentro da gente.

Mundo Novo, Vida Nova


Buscar um mundo novo, vida nova
E ver, se dessa vez, faço um final feliz
Deixar de lado
Aquelas velhas estórias
O verso usado
O canto antigo
Vou dizer adeus
Fazer de tudo e todos bela lembrança
Deixar de ser só esperança
E por minhas mãos, lutando me superar
Vou traçar no tempo meu próprio caminho
E assim abrir meu peito ao vento
Me libertar
De ser somente aquilo que se espera
Em forma, jeito, luz e cor
E vou
Vou pegar um mundo novo, vida nova
Vou pegar um mundo novo, vida nova.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Sugestão para fugas

Tem se tornado chato ultimamente falar de fuga de presos na província em que vivo.
Nos últimos 3 meses, 3 fugas da cadeia.
E se for contar as tentativas que os policiais acabam frustrando, a estatística já aumenta um pouco.
E olha que estava tudo tranquilo. Quando já se passava reto do fim da folha de julho para o início da de setembro, eis que surge outro episódio.
E lá vem as perguntas que estou cansado de fazer, a velha procura por novos caminhos pra tratar o assunto, que quase chegam as mesmas respostas... superlotação, falta de vagas, escassos funcionários.

Mas, por obra do acaso, encontrei esse texto do Rubem Alves que brinca com tema semelhante.

- Sugestão prática para resolver nosso problema penitenciário: Leio que o “Bóris“, criminoso da quadrilha do Andinho, fugiu da penitenciária. Parece que os criminosos fogem das penitenciárias quando querem. É claro que é preciso pôr um fim a esse estado de coisas. Aí eu tive uma idéia brilhante: é normal que os governos estabeleçam convênios de cooperação: um ajuda o outro. Acontece que a penitenciaria de Alcatraz, a mais famosa de todas, foi desativada. Ela está localizada num local aprazível, charmoso, cobiçado por turistas, uma ilha na baía de S. Francisco com vista para a Golden Gate Bridge, se não me engano. Pensei: que desperdício! Aquela fortaleza magnífica, vazia. Aí pensei que o governo brasileiro poderia fazer um convênio com o governo Bush: em troca da nossa cooperação no combate ao terrorismo, o governo americano nos alugaria Alcatraz, para o combate ao crime. Nada mais prático. Pois é certo que os criminosos se sentiriam felizes por estar num lugar tão privilegiado, tão famoso. Não quereriam fugir. Viveriam a gozar as delícias daquele condomínio cercado por mar e poderiam se dedicar a atividades que eventualmente comoveriam o seu coração e os tornariam sábios e ordeiros... É preciso notar, também, que sobre aquela região paira a possibilidade de um terremoto gigantesco que levaria tudo para o fundo do oceano.

Rubem Alves. "Quarto de Badulaques (VIII)". Correio Popular, 31 de março de 2002.

sábado, 4 de setembro de 2010

Na memória

Palavra é fugidia. O sentimento transborda, o pensamento voa na lembrança. As horas passam em recordações que avançam o silêncio da noite no encontro ao dia. O ponteiro corre diante de tantos momentos especiais para recordar.
Se ganhassem telas, as galerias seriam infinitas. Quadros pintados a múltiplas mãos em profusão de cores sem obedecer a convenções ou formas. Tinta para todos os lados. O brilho ofuscaria quem olhasse. Se assumissem a projeção de um filme, faltaria película para retratar tanta coisa. Instantes de magnífica beleza de vida, vivida intensamente. Lições de que à memória não cabe o espaço, não cabe o tempo, não há métrica que dê a medida.
Mas em toda essa imensidão, Andressa, o teu sorriso aparece em toda a parte. Com o nome de princesa que te foi dado, nada mais justo ser lembrada pela ternura do gesto mais simples e encantador. E é assim que tem acontecido nos últimos dias. Todos devem ter lembrado esse sorriso de feição angelical e um olhar diferente. Há algo de perfeição, irmã, de divino na forma com que o espalha em todas as recordações.
É difícil buscar sentido ou respostas. Mas para mim, o sorriso que aparece na memória não exige explicações. Apenas envia a mensagem de que é preciso viver com alegria e braços abertos para o mundo.



Andressa

*16/12/1988 + 31/08/2009

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Patriarcas

Ao telefone, Saulo perguntou à irmã, Anita, o que seu pai precisava.
-Ele está sem chinelo. Da última vez que fui lá, estava usando um muito simples e velho.
Era a deixa para Saulo. Comprou o chinelo, percorreu 215 km e entregou o presente. O pai, Jair, não é daqueles que se queixa se alguém vai se lembrar dele ou não no Dia dos Pais. Vive com a mulher Guta, que já perdeu as contas dos anos vividos, em uma casa aos fundos de outra num declive que os esconde do resto do mundo. Ele, com 78, e ela, 79, vêem apenas o alvorecer e a noite cair no resto de vida que há de se levar.
-Quantos anos vou fazer? Setenta e...?
-Nove, responde Jair. Difícil cobrar à memória embaralhada pelo tempo daquela senhora quantos anos já viveu. Às vezes, tal como criança, maldiz a casa, que não cabe mais nas lembranças dispersas.
Mas Jair abriu um sorriso diferente aquele dia. Por trás dos óculos amarelados e da pele flácida do rosto magro, carregava o brilho no olhar de ser lembrado. Não era só o chinelo que lhe fazia contente, trançado em couro qual sandália, envolvendo pela primeira vez pés finos, alvos, base reta e grossa. Era o beijo que o filho cinquentenário vinha lhe trazer, o alívio de passar um breve tempo juntos a conversar na varanda. Eles, as esposas e um neto de Jair, Jorge, num dia de sol descortinado por tanto tempo de chuva e frio.
E falaram da vida, de parentes, da reforma no banheiro da casa. Riram, lamentaram, conformaram e despediram-se. Jair acompanhou Saulo, sua nora Aurora e o neto, dos fundos até o portão. Guta já não sobe mais degraus e rampas e fica com a diarista, que por vezes é cuidadora.
Mas as pernas finas de Jair ainda o levam. Chorou mais uma partida entre tantas e agradeceu a visita. Religiosamente, terminou com o “Vão com Deus”. E foram.

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Nos fundos da casa, cheiro de churrasco. Era Zé que assava pedaços suculentos de filé ao sol quente do começo de tarde em agosto. Boné na cabeça para proteger a careca e os poucos cabelos ao redor, brancos como as nuvens, que resolveram não aparecer no céu daquele dia. A carne na grelha de uma pequena churrasqueira sempre foi a especialidade e a melhor forma de receber os entes queridos. Reunião de família sem o churrasco não era reunião de família.
-Eles gostam bem passada. Mas essa aqui ‘tá meio no ponto’. Belisca aí.
Queixava-se ainda não estar tudo pronto.
Saulo e a filha Aurora acabam de chegar. Não tardou para que ela mostrasse à mãe Maria e à irmã Elis o presente que daria ao pai. O sobrinho, o pequeno João Paulo, 4 pequenos anos, logo arrancou a sacola da mão e correu sala adentro, cozinha e varanda.
-Vô, vôôô. Ó o teu presente, gritou subindo a escada.
O vô Zé riu sem jeito e achando graça. Tirou a caixa da sacola e abriu. Era um perfume, presente favorito, com o qual banhava-se depois da ducha diária. A caixa azul, semelhante ao perfume da propaganda na TV, logo provocou alvoroço no menino.
-Era bem esse que eu queria dar.
O vô preocupado com a proximidade do presente com a churrasqueira, já ia pedindo pra guardar. Mas logo foi interrompido.
-Não vai me dar um abraço?
-Papagaio come milho, periquito leva a fama! sacou a tia Aurora.
Entre gargalhadas, João Paulo ganhou o abraço forte do Vô Pai.

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quarta-feira, 14 de julho de 2010

Pra quê dizer que a vida é mesmo assim???

Tinha que ser do Hebert Viana!!!
Tinha que apertar o play justo nela hoje...
Nada acontece por acaso!



Quando Você Não Está Aqui

Composição: Herbert Viana / P. C. Valle

Prá quê dizer que a vida é mesmo assim?
Prá quê negar que estou longe de mim ?
Sonhando com você, sonhando em te rever, prá quê?

Prá quê buscar palavras na razão?
Me diz, prá quê?
Se gente é coração, se insisto em te querer e não sei
te esquecer, prá quê?

Quando você não está aqui, é sempre noite sem luar e sem fim
Quando você não está aqui, nem as estrelas vão brilhar pra mim

Prá quê dizer que o sonho é uma ilusão?
Prá quê buscar pra tudo explicação?
Quem ama é sonhador, eu só tenho um amor, você

Quando você não está aqui, é sempre noite sem luar,e sem fim
Quando você não está aqui, nem as estrelas vão brilhar pra mim

Prá quê dizer que a vida é mesmo assim?
Prá quê negar que estou longe de mim?
Sonhando com você, sonhando em te rever...prá quê?