terça-feira, 17 de agosto de 2010

Patriarcas

Ao telefone, Saulo perguntou à irmã, Anita, o que seu pai precisava.
-Ele está sem chinelo. Da última vez que fui lá, estava usando um muito simples e velho.
Era a deixa para Saulo. Comprou o chinelo, percorreu 215 km e entregou o presente. O pai, Jair, não é daqueles que se queixa se alguém vai se lembrar dele ou não no Dia dos Pais. Vive com a mulher Guta, que já perdeu as contas dos anos vividos, em uma casa aos fundos de outra num declive que os esconde do resto do mundo. Ele, com 78, e ela, 79, vêem apenas o alvorecer e a noite cair no resto de vida que há de se levar.
-Quantos anos vou fazer? Setenta e...?
-Nove, responde Jair. Difícil cobrar à memória embaralhada pelo tempo daquela senhora quantos anos já viveu. Às vezes, tal como criança, maldiz a casa, que não cabe mais nas lembranças dispersas.
Mas Jair abriu um sorriso diferente aquele dia. Por trás dos óculos amarelados e da pele flácida do rosto magro, carregava o brilho no olhar de ser lembrado. Não era só o chinelo que lhe fazia contente, trançado em couro qual sandália, envolvendo pela primeira vez pés finos, alvos, base reta e grossa. Era o beijo que o filho cinquentenário vinha lhe trazer, o alívio de passar um breve tempo juntos a conversar na varanda. Eles, as esposas e um neto de Jair, Jorge, num dia de sol descortinado por tanto tempo de chuva e frio.
E falaram da vida, de parentes, da reforma no banheiro da casa. Riram, lamentaram, conformaram e despediram-se. Jair acompanhou Saulo, sua nora Aurora e o neto, dos fundos até o portão. Guta já não sobe mais degraus e rampas e fica com a diarista, que por vezes é cuidadora.
Mas as pernas finas de Jair ainda o levam. Chorou mais uma partida entre tantas e agradeceu a visita. Religiosamente, terminou com o “Vão com Deus”. E foram.

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Nos fundos da casa, cheiro de churrasco. Era Zé que assava pedaços suculentos de filé ao sol quente do começo de tarde em agosto. Boné na cabeça para proteger a careca e os poucos cabelos ao redor, brancos como as nuvens, que resolveram não aparecer no céu daquele dia. A carne na grelha de uma pequena churrasqueira sempre foi a especialidade e a melhor forma de receber os entes queridos. Reunião de família sem o churrasco não era reunião de família.
-Eles gostam bem passada. Mas essa aqui ‘tá meio no ponto’. Belisca aí.
Queixava-se ainda não estar tudo pronto.
Saulo e a filha Aurora acabam de chegar. Não tardou para que ela mostrasse à mãe Maria e à irmã Elis o presente que daria ao pai. O sobrinho, o pequeno João Paulo, 4 pequenos anos, logo arrancou a sacola da mão e correu sala adentro, cozinha e varanda.
-Vô, vôôô. Ó o teu presente, gritou subindo a escada.
O vô Zé riu sem jeito e achando graça. Tirou a caixa da sacola e abriu. Era um perfume, presente favorito, com o qual banhava-se depois da ducha diária. A caixa azul, semelhante ao perfume da propaganda na TV, logo provocou alvoroço no menino.
-Era bem esse que eu queria dar.
O vô preocupado com a proximidade do presente com a churrasqueira, já ia pedindo pra guardar. Mas logo foi interrompido.
-Não vai me dar um abraço?
-Papagaio come milho, periquito leva a fama! sacou a tia Aurora.
Entre gargalhadas, João Paulo ganhou o abraço forte do Vô Pai.

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